Agulha no palheiro
- Luísa Olímpia
- 15 de out. de 2018
- 7 min de leitura

Conheci Marcos quando eu ainda era uma criança, aos 8 anos. Tinha acabado de adotar meu primeiro peludo, o Batata, um vira lata cor de caramelo. Fiz um questionário de perguntas (sempre tive alma de jornalista) que era tão completo a ponto de incluir o motivo pelo qual a ponta de seu rabo é branca. “É a coloração do pelo dele”, ele respondeu, assim como a todas as outras perguntas, com calma e paciência. Desde então, minha família e eu mantemos uma admiração muito grande por nosso veterinário.
O Doutor Marcos de Mourão Motta atende animais de pequeno porte e animais silvestres em sua clínica veterinária, a Cães e Amigos, na região da Pampulha. Ele costumava abrigar animais vítimas do tráfico, dos maus tratos, de atropelamentos e do abandono na própria clinica. Porém a vizinhança não via com bons olhos o acúmulo de animais e entrou em conflito com o veterinário. Assim surgiu a ONG Asas e Amigos, em Juatuba, que hoje abriga cerca de 530 animais domésticos e silvestres. Neste sítio, todos são recebidos com carinho e sem preconceitos. Todos têm um cantinho especial.
A ONG
Fui recebida aos pulos de um simpático e alegre vira-lata. Naquela primeira área, o som das mais de 100 aves era mais alto que o barulho dos fogos na virada do ano. Era um domingo e Marcos estava ali para alimentar os animais, pois eles não tiram folga de comida. A limpeza poderia ficar para depois, a cargo dos funcionários da semana.
Todos os dias a polícia traz novos animais. Eles são entregues na clínica e, depois, Marcos os leva para a ONG. A Asas e Amigos é a única que cuida, trata e abriga bichos silvestres de graça. Apesar de existirem muitas entidades em Belo Horizonte que cuidam de animais domésticos, os pássaros que ficam cegos, sem as patas ou com as asas tortas (às vezes, os três ao meso tempo) em consequência do tráfico também necessitam de abrigo, já que, na maior parte das vezes, não podem voltar à natureza.
Marcos me levou até a frente de um dos recintos, um dos maiores. Ele me pediu que adivinhasse qual animal vive ali, disse que ela estava olhando para mim. Olhei de um canto ao outro, para cima e para baixo. Vi pequenas casinhas penduradas no alto, então deduzi que seriam aves; Marcos deve ter rido internamente de mim. Quando me pergunto se eu entraria, eu disse que não, mas ao perguntar se eu entraria junto com ele, a resposta foi diferente. Entramos. Continuei não vendo nada.
Bem ali pertinho, em cima de um muro, estava uma onça. Ele deve ter rido novamente de mim, pois não era uma onça, mas sim uma jaguatirica. Apesar de pequena, ela já estava idosa. Sua fiel companheira estava atrás do muro rosnando para nós. O Jardim Zoológico de Belo Horizonte tinha interesse na jaguatirica mais nova, mas o Ibama não quis separar as duas amigas. Marcos disse que eu realmente confiava nele para ter entrado ali. “Claro”, respondi.
Fui apresentada às araras azuis: um casal de fêmeas perto de nós e, ao fundo, um casal formado por macho e fêmea. Não consegui entender como ele sabia que as fêmeas formavam um casal e fui acusada de ser preconceituosa, apesar de eu apenas não conhecer aves o suficiente para saber de seu íntimo. Enquanto tentava mexer no pé de uma das araras pelo buraco da cerca, ele me explicou que já não conseguia mais ficar tão próximo a elas como costumava fazer. Além disso, elas sempre ficam juntas, lado a lado, e uma cuida dos ovos da outra.
Voltamos à ala onde ficam os pombos vítimas de atropelamento, algumas mini-corujas e alguns dos macacos, em especial, um filhote chamado Rodolfo. Ele não mora ali com os outros macacos, só estava a passeio, pois mora com Marcos. Com a certeza de que era manso, ele me convidou a pegar Rodolfo no colo, me deixando muito feliz, já que, com exceção do carinho feito minutos atrás em um macaco, eu nunca havia pegado em um. No entanto, Teresa, a esposa de Marcos, também veterinária, não tinha tanta certeza assim e preocupou-se: “Marcos, ele assusta com quem não conhece! Pode morder!”. Não sei se pelo medo em si, ou se pela mudança no tom de voz de Teresa, Rodolfo não concordou em vir ao meu colo, mas, ao menos, consegui fazer carinho em suas costas.
Por fim, enquanto Marcos preparava a comida dos tatus (uma mistura de ovo, leite, ração de gato e carne, todos triturados no liquidificador), perguntei, apesar de já imaginar a resposta, se ele ficaria somente na ONG caso fosse possível. Se ele pudesse, seria sim. Infelizmente, o dinheiro é necessário, e ele vem dos atendimentos da Clínica Cães & Amigos.
A clínica
Não errei a casa dessa vez. Passei direto pela primeira, a qual suponho que seja residencial. Também não parei na segunda, onde funciona um curso de inglês, que, apesar de não ter semelhança alguma com o muro da clínica, possui uma placa dizendo “Aqui não é a clínica veterinária. Ela fica ao lado”. Logo chegou uma senhora com sua cadela, porte grande, branca com manchas pretas, e fiz amizade com elas enquanto esperava Marcos chegar. Quase que instantaneamente, ele já estava no meu colo lambendo meu rosto.
Teoricamente, a rotina de Marcos deveria ser simples: manhã destinada às consultas, tarde às cirurgias e os cuidados com a ONG seriam feitos à noite. Mas, no dia a dia, tudo acaba se misturando; os atendimentos são realizados entre uma cirurgia e outra e a ONG precisa ficar para a madrugada. São muitos afazeres e muita correria. Não é possível que seu dia tenha apenas 24 horas e sua semana, 7 dias.
Ele tem o dom para exercer a medicina veterinária, visto que basta olhar para seu paciente que já sabe qual é a doença. Cada detalhe contado pelo dono também colabora muito para chegar a um resultado. Apesar de não parecer, todas as circunstâncias contadas são relevantes, como o modo de andar e de respirar. O toque é importante para identificar uma fratura em uma pata machucada, por exemplo. Ao apalpar o abdome, é possível identificar os órgãos, contribuindo para o diagnostico e dispensando o raio-x.
Este é o diagnostico prático, ou seja, não necessita de exames, como acontece no método teórico. Marcos percebeu que não é possível depender de fatores externos para salvar uma vida, só pode contar com ele mesmo. Na faculdade, foi incentivado pelos professores a seguir sua intuição e aprendeu a analisar tudo que tem no momento e prosseguir por uma linha de raciocínio. Mais tarde, entendeu a importância do método, pois não há quem pague a conta de um cachorro resgatado da rua.
Aliviei-me ao saber que a eutanásia não é algo recorrente. Até ontem, eu repudiava totalmente a ideia do sacrifício do animal, mas agora comecei a entender. Marcos me explicou que é feito com a total consciência do veterinário, portanto se ele considerar que não é o melhor e que não deve ser feito, ele não fará. Não será convencido por terceiros, agirá de acordo com sua própria percepção.
Marcos tem histórias boas e histórias ruins para contar. Existem donos que, apesar da baixa renda, se esforçam ao máximo para arcar com as despesas médicas de seus bichinhos, geralmente dividindo-as em várias pequenas prestações, pagando quando podem. Mas, infelizmente, existem os que se aproveitam da solidariedade do veterinário e alegam não ter condições de pagar; esta cena se repete com muita frequência.
Ele, assim como todos na clínica, convivem diariamente com a arrogância e com a prepotência dos clientes. Contudo, Marcos tenta relevar todo esse desrespeito cometido.
O veterinário
Com uma paixão vinda de nascença, Marcos sempre teve como objetivo a veterinária. Desde o inicio da faculdade, já sabia o que queria; foi tranquilo a ponto de não compartilhar com os colegas as preocupações sobre o futuro profissional após a formatura.
A sensação de cuidar do primeiro animal é do tamanho da responsabilidade com aquela vida. Dependendo da conduta, o animal pode viver ou morrer. Com certeza a sensação não é de alegria. Talvez medo, talvez desespero, pois era um veterinário recém formado e pouco sabia.
Marcos aprendeu sozinho a cuidar dos animais silvestres. Não teve uma matéria da faculdade e nem mesmo um professor que o ensinasse. Não havia veterinários em Belo Horizonte que tratassem dos silvestres. Quando o bicho doente chegava, precisava buscar informações em livros em inglês. A mortalidade era muito alta e ele se questionava o por quê disso. Foi desenvolvendo e aprendendo, principalmente com os papagaios, pelo fato de muitas pessoas terem um em casa, mas nenhum veterinário para cuidar. Dessa forma, precisou se especializar em silvestres por uma necessidade. Ele precisava fazer alguma coisa, já que os animais estavam morrendo sem alguém para cuidar deles. A perda nunca é agradável, mas o faz trabalhar mais. Quanto mais perde um animal, mais busca saber o motivo e aprender sobre essa espécie. Marcos, com seu eufemismo, diz que é só dedicar um pouquinho.
Os animais cuidados por Marcos sabem quando ele está chegando. Ele considera isto um retorno pelo bem feito à eles. Mesmo nos casos em que não há regresso à natureza, a felicidade é muito grande. O fato de o animal sarar e conseguir ter uma qualidade de vida é muito gratificante para Marcos.
A cada dia, Marcos se sente mais triste com o ser humano. O animal está passando por todo este mal devido a uma pessoa. Os casos mais impressionantes são as queimaduras. Não é possível encontrar uma desculpa para ter acontecido sem querer, pois para colocar fogo em um bicho é necessária uma consciência muito grande. Como no caso da Mulinha, que teve fogo colocado em seu corpo por não querer trabalhar um dia. Depois de 5 anos de tratamento, conseguiu se recuperar. Marcos acabou se apegando muito a ela, afinal passaram vários anos juntos. Ele sofreu muito quando a perdeu este ano (com a idade avançada e problemas de coluna), mas precisava pensar nela primeiro e depois em si mesmo.
Marcos, assim como eu, prefere os animais. Eles nunca vão nos trair. Vão estar conosco durante toda a vida deles. Diferente do ser humano, o qual é muito incerto e pouco agradável. O único erro, o único que não foi bem criado e o único que não é bem vindo na Terra é o ser humano.
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